O Mal-Estar na Cultura Atual e nos Modos de Pensar – Alicia Fernandez

O Mal-Estar na Cultura Atual e nos Modos de Pensar

Por Alicia Fernández

Um dos aspectos da subjetividade mais atacados pela sociedade atual é a liberdade de pensar. Esse ataque é lento, persistente e muito perigoso, porque ocorre imperceptivelmente entre os jovens e os adultos. Entre as crianças, ele se mostra de forma mais direta na escola, aparecendo como fracasso inquietude, falta de atenção.
… fenômenos tais como estresse, neuroses narcísicas (depressão), neuras-tenia, neurose de angústia, ataque de pânico, manifestações somáticas, nós os entendemos como situações prévias: formas de não-pensamento que emergem em um sujeito que não tem ainda os elementos necessários para realizá-lo… (Estamatti, 1999)
Hoje há novas formas de mal-estar, produzidas entre outras coisas pelas características que vem tomando o avanço da telemática (que por si não é negativo, caso pudesse ser uma riqueza para a humanidade) imersa em uma sociedade consumista, dominada pelas leis de mercado e por seus valores éticos. 
Aqui quero compartilhar com o leitor mais perguntas do que respostas sobre a incidência, em termos de pensamento e de corporeidade, das novas formas de mal-estar na cultura, produzidas pela atual sociedade neoliberal.
Autorizo-me a escrever sobre as minhas dúvidas a esse respeito, não só porque escrever é um modo de facilitar o pensar, meu próprio pensar, mas também porque creio que é necessário colocar tais questões no centro da cena educativa.
Qualquer pessoa, ao entrar em uma escola hoje, após ter passado 10 ou 20 anos afastada dessa instituição, perceberá que o cenário permanece quase idêntico ao que fora no passado, embora a dramática em jogo seja completamente diferente. Essa pessoa que entra na escola hoje sofrerá um impacto não só com o cenário que é o mesmo, mas também com os tipos de personagens: encontrará alunos, professores, professoras, educadores, educadoras, diretores, supervisores, orientadores, porteiros… Talvez encontre menos pais e mães do que antes como única variação.
O cenário e os personagens, quando imóveis, são semelhantes, e isso pode confundir, já que o drama é muito diferente. Poderá encontrar-se, por exemplo, com uma situação como esta que relato a seguir:
Francela, de 8 anos, ao entrar na escola hoje, pode chegar depois de ter ouvido seu pai insultar o mundo, insultá-la, insultar a sua mãe e a vida, que lhe deixou sem trabalho e com a culpa de tê-lo perdido. Leva junto com ela a depressão de uma mãe, sobrecarregada com três trabalhos e a culpa por não poder acompanhar seus filhos. Esse pai, expulso do mercado de trabalho, não recebeu em troca nenhuma provisão de ideologia ou pensamento crítico que lhe permitisse questionar o “modelo masculino hegemônico”. Está desocupado e sente, porque assim impõe a sociedade de mercado, sociedade que também desocupou, esvaziou sua masculinidade. Realiza tarefas domésticas e cuida dos filhos, recebendo isso como um castigo para fracassados. Não consegue escolher. Continua chamando de “maricás” o filho que chora, o qual se permite chorar apenas quando está no banho; as lágrimas, confundidas com o sabão, não podem ser reconhecidas como choro puro e, necessário. Assim, esquiva-se do vizinho, que é o pai de Francisco, colega de Francela, o qual, por sofrer de síndrome de pânico, foi obrigado a licenciar-se por 15 dias. Francisco, então, vai para a escola enquanto sua mãe trata desesperadamente de seguir a última dieta, cada vez mais emplastada com antidepressivos.
Francela está “no mundo da lua”, diz a professora, que também tem três trabalhos, mas, apesar disso, um dia perguntou à menina sobre o que estava pensando e descobriu que essa “lua” estava cheia de lágrimas. Para Francela, foi suficiente encontrar alguém que a escutasse para começar a escutar a professora. Como disse Pedro, o irmão adolescente da menina: “Os professores sempre pedem que emprestemos nossa atenção, mas nunca nos devolvem”.
Pena que a professora de castelhano não tenha entendido o chiste e o tenha mandado à Direção; como era a quinta vez em uma semana que ia até seu gabinete, a Diretora mandou-o para a psicopedagoga, a qual o enviou ao neurologista, que indicou Ritalina.
Francela conta que sua mãe disse que não havia mandado dinheiro para a psicopedagoga, pois estava fazendo um esforço para comprar os comprimidos para uma “doença que o pobre Pedro tem”.
Francisco corre “como um desatado”, disse a professora de matemática. “Claro, não é para menos”, diz Francela, como disse Pedro, “ele está o dia todo amarrado olhando televisão”.
Chega à escola um menino pressionado pela falta de contenção familiar, pois pertence a uma família que está fora da contenção das outras instituições. Esse menino é recebido por uma professora que teme perder seu trabalho, ou por uma professora cuja renda é o único sustento da casa e sobre a qual recaem não só a demanda de ensinar, mas também outras demandas extraclasse.
A psicanalista argentina Mirta Estamatti (1999) escreve:
… Há novas pautas, individualismo, consumo, competência; há abuso, situações de violência real, desagregação da família, queda estrondosa de valores compartilhados que caracterizam o humano (solidariedade, altruísmo, respeito pelo outro); há falta de responsabilidade nos vínculos e predomínio de uma facilitação encarnado no consumo de drogas e fármacos, por exemplo, ou em pais e mães que evitam sua responsabilidade. Hoje é valorizada a renovação, a velocidade, o efêmero, a imagem. Propõe-se como modelo uma vida sexual autônoma do amor e do encontro, considerando-se que assim pode e/ou deve ser. Por sua vez, descarta-se que isso possa produzir angústia, desequilíbrio, mal-estar em todos os âmbitos e que resulte em permanente gerador de relações perturbadoras. As relações de trabalho, para não falar de desemprego, tendem, cada vez mais, à escravidão. Nega-se a dor e não há espaço para o luto, em uma sociedade onde a perda de pautas e as convenções mudam permanentemente. Diante disso, a resposta é o protesto mudo, a abulia, a dessubjetivação, a resistência passiva, o uso da tatuagem, o aumento do índice de suicídios na adolescência, o retorno do castigo corporal nas escolas, a delinqüência, o retorno a formas de canibalismo. Não são estas as novas formas do mal-estar na civilização?…
E eu pergunto: essas novas formas de mal-estar na cultura não atacam principalmente a capacidade reflexiva e a confiança no poder de nossa esperança?

N. de T. No original prestemos, cuja tradução é emprestar. Quando usamos a expressão preste atenção, ela é para nós uma concessão, embora tenha como sinônimo emprestar.

Fonte: Os Idiomas do Aprendente – Análise das Modalidades Ensinantes com Famílias, Escolas e Meios de Comunicação. Autora: Alicia Fernández. Artmed Editora. Porto Alegre, 2001.

Psicopedagoga (Argentina)

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