Perdidos no espaço – Ivan Capelatto

Perdidos no Espaço

Por Ivan Capelatto

Não há como cuidar dos pequenos sem lhes proporcionar muitos momentos de raiva, frustração, desconforto e cansaço, assim como alegria, prazer e qualquer outro sentimento
E quem disse que criar filhos ia ser fácil? Entre a doce imagem da mãe penteando os cabelos da filhinha e a do pai correndo com seu garoto num parque verdejante há muito choro, raiva, birra e tudo aquilo que ninguém gosta de imaginar enquanto espera pelos novos habitantes da casa. Percebe-se isso logo nas primeiras fraldas. Mas ninguém avisou que seria tão difícil lidar com tantos conflitos numa era em que poucos têm idéia clara do que é ser pai e mãe. Aí bate o medo de errar. E muitos vivem evitando o confronto numa perigosa relação de igual-para-igual com os filhos.
Tudo parece muito moderno. Tudo é explicativo e combinado entre pais e filhos para que não se sintam forçados a nada. E também para que não fiquem com muita raiva quando tiverem por exemplo, de encarar suas obrigações cotidianas. No fundo, é tudo mera negação do modelo autoritário de pais e mães das décadas passadas ou simplesmente uma relação às cegas, sem modelo a seguir. Querem evitar atritos para reduzir a necessidade de tomar decisões e as chances de decidir errado. Daí, viram amiguinhos de seus filhos, com muitos “combinados” e um convívio bem menos conflituoso. Por ora.
Com ou sem medo de errar, não há como cuidar dos pequenos sem lhes proporcionar muitos momentos de raiva, frustração, desconforto e cansaço, assim como alegria, prazer e qualquer outro sentimento. E os pais têm de assumir claramente que são os causadores daquilo tudo que seus filhos estão sentindo, por menos lisonjeiro que seja. Esta é uma parte imprescindível no processo de crescimento emocional. Alvos do ódio, da paixão, do ciúme e de toda sorte de sentimentos brutos, os pais permitem aos pequenos elaborar e fundir o que sentem, capacitando-os a ter afeto e desejo para tocar suas vidas com autonomia.
É sempre bom repetir: no conflito é que se cresce. A garotinha aprende que pode odiar o pai quando ele a coloca na cama para dormir, sem que este sentimento destrua aquela pessoa tão querida. Para um adulto, é difícil imaginar que um dia esta questão foi importante em sua vida, mas para uma criança ela é essencial. Tentar evitar ou diminuir os confrontos, sob qualquer pretexto, é privar os filhos de crescer. Aí está a gravidade do que muitos pais-amiguinhos andam fazendo.
Dá mais trabalho encarar o risco de repetir injustiças e arbitrariedades do passado. Os pais que tomam decisões claras e estabelecem limites para as crianças sentem-se culpados, com medo de serem odiados para o resto da vida. Para os pais-amiguinhos, confusos à sombra do despotismo ou no vazio da falta de modelos, o caminho tem sido o mais distante de qualquer risco. Querem dar a seus filhos tudo o que eles próprios não tiveram. É comum ouvir deles expressões típicas como: “Meus filhos não passarão pelo que eu passei”.
Falta-lhes o mínimo de segurança para perceber a diferença entre ser autoritário e assumir integralmente a função de cuidar dos pequenos. Os pais despóticos proíbem, obrigam, dão ordens, reprimem, criticam, julgam e punem, tudo em nome de sua vontade particular.
Leva-se em conta o bom ou o mau humor do soberano, a disposição e a disponibilidade de sua majestade. Tudo é um capricho do usurpador. Pais que realmente cuidam de seus filhos estabelecem limites e exigências em nome de uma lei clara, respeitada por todos. Tudo leva em conta um parâmetro imutável: preservar e estimular a vida.
Os pais que respeitam esta lei cumprem sua tarefa de dizer simplesmente “não” quando o menino esperneia para comer chocolate meia hora antes do almoço. E estão sempre prontos a alcançar a garotinha que teima em chegar perto da piscina ou de uma sacada sem proteção. Quantas vezes ela se aproximar do perigo serão as vezes que a mãe vai pegá-la no colo e trazê-la de volta a um lugar seguro. Esta, aliás, é uma diferença fundamental em relação ao modo autoritário e mandão. Quem cuida dá afeto, age mais e fala menos, dialoga com seus filhos através do corpo.
Por isso não faz sentido explicar as razões de uma determinada decisão. Explicar é esvaziar a força do limite. Pais que cuidam, de fato, falam com as mãos, tocam, dão colo. Ao mesmo tempo em que vêem seus filhos revoltados (e intimamente agradecidos), ficam perto acatam e validam sua raiva, ouvem seus protestos e os consolam. Em silêncio até. Não assumir esta função é desrespeitar seus direitos de serem crianças. “Combinar” regrinhas com os filhos é fazê-los assumir responsabilidades para as quais não estão preparados. 
Não há problema em errar e rever uma decisão. Não há mal em pedir desculpas às crianças por um equívoco ou até por um rompante autoritário. Errar enquanto se cuida dos filhos com afeto é menos ruim do que não cuidar. Basta ver que uma geração inteira formada no autoritarismo consegue trabalhar e produzir, enquanto os filhos do liberalismo total envolvem-se em proporções alarmantes com a delinqüência e as drogas. Não tem saída. É encarar agora os conflitos ou encará-los mais tarde, quando muitos já serão problemas. Melhor fazer já o que a natureza manda do que pagar depois o que a natureza cobra. Com juros.

Texto extraído da Gazeta do Povo Abril 1998
David Pontes Em parceria com o psicólogo
Ivan Capelatto e especialistas convidados.

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