DOS CONTOS DE FADAS PARA A REALIDADE – Por Izildinha Konichi

Dos contos de fadas para a realidade

Izildinha Konichi

[…]Quando a criança brinca, quando joga, constrói todo um universo mágico, é capaz de transformar meros palitos de fósforos em dragões cuspidores de fogo ou se transformar na princesa presa na torre…  E, por intermédio desse mundo simbólico do “como se”, é capaz de expressar e vivenciar suas próprias verdades e conscientizar-se delas.  Afinal, é sempre mais fácil falar sobre si mesmo, demonstrar a intensidade das emoções quando se faz de conta que se está falando sobre bruxas e fadas, sapos e príncipes… O adulto também faz isso, ainda que por outros percursos.  O próprio Jung, em seu livro Aion, escreve:  “Mitos e contos de fadas dão expressão a processos inconscientes e escutá-los faz com que esses processos de novo revivam e tornem-se atuantes, restabelecendo, portanto, a conexão entre consciente e inconsciente.” Por que então não integrar esse aspecto tão rico à devolutiva?  Por que tentar trazer a criança para o mundo do adulto, quando podemos deixar que ela escolha que partes de si quer e pode experienciar no momento?

Evidentemente, como é de se supor, nem todos os casos diagnosticados podem se beneficiar desse tipo de devolutiva, embora especificar quais são exatamente as “contra-indicações” requer um trabalho mais amplo de pesquisa.  O que posso afirmar, no momento, é que essa técnica depende de ambos – narrador e ouvinte – poderem vivenciar a estória, ou seja, poder ir além da simples narrativa racional, poder sentir profundamente, usar a emoção.  Partimos do pressuposto de que cada indivíduo possui dentro de si recursos para a autocompreensão e para a modificação de seus autoconceitos, de suas atitudes, e de seu comportamento, e que esses recursos podem ser ativados por meio de atitudes psicológicas facilitadoras.

A maior parte dos clientes com os quais tenho trabalhado dessa maneira com sucesso tem sido aqueles que apresentam como queixa dificuldades de aprendizagem por questões emocionais, por agressividade, queixas psicossomáticas e sentimentos de menos valia.

As sociedades primitivas sempre reuniram pessoas para contar e ouvir histórias – fossem sacerdotes transmitindo mitos e ritos da tribo aos seus discípulos ao redor do fogo ou mulheres mais velhas contando estórias simbólicas às crianças.

[…]As sociedades modernas, no entanto, presenciam um fim de século cujas características parecem ser a velocidade, a mobilidade e a descartabilidade não só dos produtos, das tecnologias e dos valores, como também das relações pessoais.

Com a emancipação da mulher e sua entrada cada vez maior no mercado de trabalho, grande parte das famílias deixou o antigo hábito de reunir-se para comentar sobre os acontecimentos do dia.   Se, de um lado, isso constitui um avanço social, de outro, o ritmo rápido imposto pela atualidade, especialmente nos grandes centros urbanos, aliado á sobrecarga de funções e papéis desempenhados pela maioria das mulheres mães, está privando, cada vez mais, a criança do convívio com os contos de fadas.  O mágico e o imaginado estão, a meu ver, numa progressão geométrica, sendo deixados de lado em função do prático, do previsto, do racional.  O aconchego e a cumplicidade das reuniões para se contar estórias estão sendo substituídos pelos programas infantis oferecidos pela TV.  A questão que fica é quanto esses programas conseguem realmente substituir a experiência de ouvir a estória.

Acredito que a imagem que acompanha a estória, num programa infantil de TV, por exemplo, diminui – embora não elimine – a possibilidade de a criança “olhar com o coração”, mas pressupõe um olhar mais racional que contribui para um distanciamento entre afeto e intelecto.

E aqui me deparo com outra questão:  quanto esse distanciamento – se realmente ocorre – contribui para o aparecimento de doenças psicossomáticas, como a bronquite, por exemplo.

O ato de ouvir, penso, aproxima o indivíduo de si mesmo, permite a criação da imagem interior e a e a identificação com ela.  Impulsiona o indivíduo ao confronto com as imagens do seu inconsciente que, segundo Jung, é um dos aspectos que permitem ao homem caminhar em direção à individualização.

[…]Uma prática comum entre os ditos “povos primitivos” – o uso da música e da palavra como uma forma de interiorização e ampliação da consciência, levando a processos de cura – vem, nos últimos tempos, cada vez mais sendo incorporada pela psicologia holística moderna, com resultados surpreendentes, embora ainda seja vista por muitos com certa ressalva e careça de mais pesquisas.

A forma de atuação com as crianças é bastante simples.  Podemos utilizar uma estória clássica ou criar uma – freqüentemente opto pela segunda alternativa.

Procuro adequar o tipo de estória à idade e aos interesses da criança (contos de fadas, fábulas, aventuras, mitos etc.).  Em geral, crianças até a idade de 10 anos costumam responder melhor a contos de fadas e fábulas, enquanto as maiores parecem interessar-se mais pelos mitos.  Porém, isso não funciona como uma regra fixa.

Qualquer que seja a forma escolhida, no entanto, o narrador deve ater-se a todo um repertório no modo de contar:  entonação de voz, gestos, olhares…  não como uma representação teatral apenas, mas como se entre ele e o que conta pudesse haver uma unidade.  Isso só é possível  se o terapeuta puder estar realmente com a criança, se puder sair do concreto para entrar, com ela, no mundo do “como se”.  Penso que, para que isso aconteça, são necessárias duas coisas apenas:  gostar muito de crianças e gostar muito de contos de fadas.  Mais do que a técnica, é preciso usar a sensibilidade e a intuição.

Quando a opção recai sobre a estória clássica ou um mito, procuramos escolher um no qual possa haver maior afinidade com a criança, tornando-se assim um recurso útil não só para expressão dos dados obtidos no psicodiagnóstico, mas também como um fator que possa vir a promover o sentimento de pertencer e de integração a todo um universo, de reencontro com a unidade.

Na introdução, cria-se o ambiente no qual se desenrolará a trama e identificam-se os personagens que participarão dela.   Tanto os personagens quanto o locus são definidos pela estória do cliente, obtida pela anamnese, tomando-se o cuidado de torná-la sutil o suficiente para que não seja apenas uma transposição de informações.  Em seguida, passa-se à peripécia.  Aí são delineados os conflitos levantados durante o processo de psicodiagnóstico, assim como os aspectos saudáveis e adaptativos, que são depositados no personagem central da trama.  os personagens periféricos geralmente são fatos da vida real do cliente que contribuem ou interferem em seu desenvolvimento ou características menos relevantes de sua personalidade.  A peripécia atinge seu ápice na demonstração do modus operandi da personalidade da criança cliente.  Por fim, temos o desfecho.  Este é, seguramente, a meu ver, o aspecto mais importante de toda a estória.  Consta de dois momentos distintos:  no primeiro momento, mostra-se à criança, por meio dos personagens e do enredo, as conseqüências de sua forma de atuar no mundo (sentimentos, ganhos, perdas etc.) e, no segundo momento, introduz-se um novo personagem ou cria-se um elemento novo, cuja função é a de facilitador – geralmente uma fada ou similar – que possa fazer com que o examinado descubra em si mesmo (ouvir a “fala do coração”), dispor de recursos para lidar com suas dificuldades.  Havendo necessidade, o facilitador é configurado como um futuro terapeuta ou outro especialista, esperando-se com isso viabilizar o encaminhamento a ser proposto.

Vale ressaltar que, em nenhum momento, fazemos qualquer apontamento sobre uma possível identificação de algum aspecto da narrativa com a vida ou as características da criança em questão e nem mesmo “arrematamos” com qualquer interpretação.  Simplesmente contamos a estória   e aguardamos.  No máximo, em alguns poucos casos com os quais já trabalhamos, quando a criança aparentemente não manifestou qualquer forma de reação ao conto, perguntamos, no fim, se a narrativa tinha alguma coisa a ver com ela.

O que ocorre, na maioria dos casos acompanhados até o momento, é que, à medida que a narrativa vai se estendendo, a criança vai integrando o conto à sua história pessoal, chegando muitas vezes, ela mesma, a continuar a narrativa, trazendo à tona sentimentos, emoções e também as soluções disponíveis para lidar com suas dificuldades.

[…]Talvez a diferença fundamental nessa abordagem de atuação – do ponto de vista do examinador – resida no fato deste se colocar numa postura mais próxima da criança, numa atitude mais de troca do que de “conhecedor de verdades” e, especialmente, de profundo respeito pelo ser humano.  Acreditamos que, apenas assim, o cliente pode sentir-se suficientemente acolhido para poder, quem sabe, acreditar naquilo que é e pode vir a ser.

Izildinha Konichi é psicóloga clínica junguiana.

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