Desamparo na infância e na adolescência – JOEL BIRMAN

DESAMPARO NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA

Joel Birman

TATUANDO O DESAMPARO

A problemática em causa, a juventude na atualidade, é caracterizada pela complexidade, pois pressupõe no seu interior uma multiplicidade de temas possíveis, que poderiam todos serem inscritos no seu campo, com toda a pertinência. A cartografia em questão seria então imensa e de contornos imprecisos, em decorrência da extensão de seu cardápio de possibilidades. Devo realizar certas escolhas temáticas e enfatizar algumas linhas de fuga, portanto, para que se possa dizer algo que seja efetivamente consistente e coerente sobre a juventude hoje. Isso implica em dizer que tenho necessariamente que realizar certos recortes temáticos, enfatizando certas questões e colocando outras entre parênteses, para delinear a problemática em pauta.

A ponderação expositiva, a que aludo acima, já indica qual é a questão de fundo que se impõe e está aqui em pauta, do estrito ponto de vista teórico, qual seja, o conceito de juventude propriamente dito. Com efeito, este conceito foi recentemente subvertido, de maneira evidente, de forma que aquilo que era descrito outrora como sendo a juventude não pode ser retomado ipse littere na atualidade. Isso porque a temporalidade da juventude se alterou de maneira substantiva, seja na transformação da infância que a precede, seja na da idade adulta que a sucede.

Esta mudança crucial ocorreu não apenas nas classes populares da população, como também nas classes médias e nas elites, de forma que muitos autores já enunciaram que a infância, enquanto etapa psíquica e sociologicamente bem discriminada da existência humana, estaria em franco processo de desaparecimento e de dissolução.

Pode-se dizer então que existe na atualidade um alongamento da adolescência, que começa hoje bem mais cedo do que outrora e que se prolonga também bastante, no campo que se denominava antigamente de idade adulta. No que se refere à tradição brasileira, considerando a sua inscrição na cultura urbana, a que vou me voltar principalmente aqui, este alongamento me parece evidente.
As suas famílias são em grande parte monoparentais, centradas principalmente na figura materna, que cuida de uma prole cujos filhos, não raro, tem diferentes pais biológicos. Lançadas muito cedo na brutal experiência social, estas crianças são obrigadas a serem jovens e mesmo adultos muito cedo, convivendo precocemente com coisas terríveis e mesmo quase impossíveis, para as suas idades biológicas.

A que atribuir esta mudança significativa? Antes de mais nada, a exigência de performance realizadas sobre as crianças são muito maiores hoje do que outrora, principalmente no que se refere à multiplicidade de atividades ligadas à educação e ao aprendizado. Neste contexto, existe um incremento importante da rivalidade entre as 10 crianças, que passam a se preocupar com o futuro muito precocemente. Em contrapartida, o espaço para os jogos e as brincadeiras infantis se estreita de maneira marcante.

Configura-se, assim, um mundo que enfatiza excessivamente a rivalidade, mas que esvazia as relações de trocas mais tenras entre as crianças. A experiência da alteridade assume então contornos bem particulares por este contraste, de maneira que a solidão é uma presença crucial no atual mundo da infância. A diminuição do número de filhos nas famílias acentua ainda mais tudo isso, pois colocam um obstáculo real para o mundo de trocas entre as crianças.

Ao lado disso, a solidão passa a ser preenchida pela presença avassaladora dos jogos eletrônicos e da televisão, de forma que a criança convive ativamente com personagens virtuais, o que perturba mais ainda a sua já precária experiência de alteridade. O corpo-a-corpo se esmaece em prol da virtualidade. A televisão coloca as crianças em contacto muito precoce com temas e situações do mundo adulto, como a sexualidade, a violência e as drogas.

Todas estas experiências expõem as crianças radicalmente com a quase ausência dos limites, de forma que a frouxidão dos interditos se destaca aqui como uma problemática fundamental na constituição psíquica. A maior ausência dos pais, no transcorrer do dia, deixam as crianças sem um contraponto seguro face ao que incide sobre elas, impossibilitando a metabolização simbólica destas mensagens e temáticas.

Suponho aqui que tudo isso teve um impacto importante sobre a infância, de maneira a diminuir o seu tempo de duração, ao lado de alterar as relações das crianças com o corpo, os interditos e o outro. Não se pode subestimar aqui o efeito das imagens sobre o funcionamento biológico, como nos ensinou Lacan, de forma que uma cultura centrada sobre a imagem, como é a nossa na atualidade, terá certamente efeitos significativos sobre o organismo e a imagem corporal.

Vale dizer, as então crianças dos anos 50-60 viraram o mundo de ponta-cabeça, subvertendo as relações com o corpo e a sexualidade, que incidiram sobre os interditos instituídos.

Para podermos avaliar devidamente as transformações em questão devemos ficar atentos aos operadores que regularam tais mudanças.

A família nuclear, como célula básica da sociedade moderna, constituída que era pelas figuras do pai, da mãe e dos filhos, deixou de existir. As figuras parentais, principalmente a mãe já que a do pai já detinha este poder, passaram a ter projetos existenciais próprios, independentes do campo da família. Em decorrência disso, a relação dos pais com os filhos se transformou radicalmente. Enfim, a ordem familiar foi também revirada de ponta-cabeça.
Com a maior singularização das figuras parentais os divórcios se tornaram então lugar-comum. Como o compromisso maior daqueles era principalmente com seus projetos existenciais e não com a ordem familiar, as separações se multiplicaram, se diferenciando assim a nova família com a que lhe antecedeu historicamente, quando as separações e o fim do casamento eram não apenas objeto de censura pública, como também de escândalo.

Constituíram-se, assim, novos modelos de família, nos quais as novas figuras parentais passaram a se associar trazendo já seus filhos, provenientes de casamentos anteriores. Neste contexto, engendraram-se inevitavelmente outras conflitualidades que eram anteriormente inexistentes, em conseqüência dos novos pactos e das responsabilidades agora relativizadas. Quem são os responsáveis efetivos pela prole das alianças anteriores? O pai e a mãe? Ou, então, o padrasto e a madrasta? Ou ambos? Nestas diferentes e possíveis linhas de fratura muitas ambigüidades foram forjadas, sem dúvida, que passaram a marcar as crianças e os adolescentes de maneira indelével.

Além disso, como as mães se distanciaram mais da ordem familiar, em busca que foram de seus projetos existenciais singulares, sem serem substituídas na sua relativa ausência pela maior presença dos pais, as crianças e os dolescentes receberam aqui um golpe importante, que não pode ser absolutamente subestimado. A economia dos cuidados foi então afetada de forma significativa, incidindo inequivocamente nas novas formas de subjetivação da juventude.
Porém, como a contrapartida paterna não substituiu a relativa ausência materna, uma série de desdobramentos e conseqüências psíquicas foram aqui produzidas. Ambas as figuras parentais são as responsáveis, sem qualquer privilégio para nenhuma delas.

Bom as crianças e os jovens são muito mais deixados à deriva do que outrora no campo da família, pelo grande número de horas que ficam sem a presença dos pais, que saem para o trabalho. Não obstante a intensa agenda de atividades complementares à escola, a que são aqueles submetidos como um imperativo – esportes, aprendizado de línguas dentre outras -, tal preenchimento de tempo não tem a mesma economia afetiva que a presença dos pais.

Esses, no melhor dos casos, são substituídos por empregados, que também não tem a mesma incidência afetiva do que as figuras parentais.

O efeito maior disso é um sentimento de abandono que é provocado, pois, repito, a relativa ausência materna não foi substituída pela maior presença paterna. A suplência não ocorre, já que o formalismo relacional que marca as atividades escolares e extra-escolares não supre a precariedade de investimentos das crianças e jovens.

Um certo contingente de mães procuram substituir a sua relativa ausência pela presença maior em certos momentos do dia. Assim, acordam mais cedo para servir o café da manhã e levar as crianças à escola, da mesma forma que se esforçam para buscá-las na saída das aulas. É parte da dupla jornada de trabalho das mulheres, que suprem assim tanto a sua ausência quanto a dos pais. Porém, o desgaste emocional que isso representa para a vida destas mulheres repercute não apenas na suas relações com os filhos, como também com os maridos. Ao lado disso, a culpa está aqui presente como impulsionadora das mulheres, nestas atividades, de forma que os efeitos nefastos disso se fazem também presentes de diferentes maneiras.
Com isso, a fragilidade do investimento afetivo se faz geralmente presente, com os desdobramentos nefastos que isso provoca.

Neste contexto, os jovens ficam inapelavelmente entregues à cultura da televisão, que acabou por ter freqüentemente muito mais efeitos sobre eles do que os discursos escolar e parental. A exposição precoce à sexualidade e à violência se incrementa e se dissemina, provocando, em contrapartida, modalidades novas de sexuação e o engendramento da agressividade. Estas seriam, com efeito, os únicos meios que os jovens encontram para suprir a carência de cuidados e a solidão de suas existências.

Por outro lado, estes desdobramentos preocupantes se reforçam ainda mais com a explosão da violência urbana no Brasil contemporâneo. Assim, as crianças e jovens não compartilham mais com os seus iguais o espaço público, pelo perigo eminente da violência e da delinqüência. As trocas com os pares se restringe cada vez mais à escola, dada à proibição do espaço da rua. Ao lado disso, os jovens e sobretudo as crianças não mais vão à escola sozinhos, mas geralmente em ônibus escolares e nos carros das famílias.

O efeito maior disso tudo é a fragilização psíquica das crianças e dos jovens, que apenas enfatiza a precariedade de investimentos a que me referi acima. Por não poderem experimentar as dificuldades e os impasses que o espaço da rua e da circulação urbana impõem, os jovens não constroem medidas de proteção para isso. Com isso, o trauma se transforma numa experiência agora comum, pois se os jovens não puderem aprender para anteciparem o perigo, ficam expostos então à experiência traumática.

Os jovens hoje, no Brasil dos grandes centros urbanos, não mais dominam a cartografia da cidade e nem mesmo do bairro em que habitam, ficando então aprisionados ao exíguo espaço de suas casas e escolas, sem evidenciarem muita potência de movimento. A restrição e o engaiolamento espacial incidiu marcadamente sobre o psiquismo, pois se restringe no jovem o imperativo do ir e vir, incidindo assim no registro da liberdade. Qualquer coisa pode então se tornar perigosa e assustadora, pela fragilização juvenil. O exercício da violência pode se instituir, neste contexto, como a única defesa de que o jovem dispõe, diante do seu sentimento de impotência e da restrição de sua liberdade.
Assim, privados psiquicamente da maior presença dos pais na cena familiar, protegidos e ilhados que são pela disseminação da violência urbana, sem poderem adquirir instrumentos psíquicos de ir e vir pela falta do domínio do espaço público, a juventude se inscreve num cenário paradoxal. Com efeito, afetivamente privados e fragilizados pelo excesso de proteção, os jovens não podem aprender a se virar. Em decorrência disso, a infantilização de sua condição se prolonga, de forma que a adolescência se arrasta para além dos limites desejáveis e invade a idade adulta, de maneira que estas duas fases de existência tendem a se confundir e a se superpor.

Com isso, a possibilidade de sair da casa dos pais e seguir a sua própria existência se prolonga em demasia, pois os jovens têm poucos meios para irem embora. Neste particular, a condição da juventude hoje é dramática e real, ao mesmo tempo. Configura-se aqui também uma situação nova, pois se os jovens buscam prolongar os estudos para terem melhores condições de disputa no mercado de trabalho, por um lado, buscam também trabalhar em pequenos empregos, geralmente mal-remunerados, para possibilitar a sobrevivência e saírem então de casa, pelo outro. Por este viés também, a fragilização e a infantilização dos jovens se incrementam mais ainda.

Permanecem na casa dos pais, protegidos então por esses, mas querendo levar uma existência de adultos. Passam a viver assim quase maritalmente com seus namorados e namoradas, na casa dos pais. Com isso, a confusão geracional se institui também aqui, pela indiscriminação entre jovens e adultos, isto é, entre filhos e pais. Quem são eles, afinal das contas? Adultos ou crianças? Adolescentes protegidos ou adultos? O quadro que aqui se configura é eminentemente esfumaçado e borrado, com fronteiras e confins mal delineados.
Neste cenário, se incrementa marcadamente a onipotência dos jovens, adolescentes e adultos jovens, na sua relação com os pais. Em contrapartida, as linhas de fratura de sua fragilidade se acentua ainda mais, pela dependência em que se encontram face à aqueles, multiplicando os efeitos de sua infantilização. Os fantasmas incestuosos se fazem aqui também presentes, ao lado das atuações das figuras parentais através dos filhos, de forma a se delinear um “romance familiar” invertido.

Assim, se está evidente o que pretendo dizer aqui com tudo isso, uma mistura explosiva se delineia e se impõe com crueza neste cenário atual da juventude. Quando a privação relativa se conjuga com a fragilização e a infantilização, declinando tudo isso no contexto social de falta do horizonte para o futuro, não deve nos espantar que as culturas das drogas e da violência se imponham como marcas da juventude hoje. Isso porque se as drogas funcionam como antídotos para o sofrimento dos jovens, pelo gozo e pela onipotência que lhes possibilitam, o exercício da violência e da agressividade em geral são as contrapartidas para a impotência juvenil nos tempos sombrios da atualidade.
Neste contexto, a cultura pitbull se alastra de maneira preocupante nas classes médias brasileiras, como se dar porrada e brigar fossem signos valorizados entre os jovens para marcar a sua superioridade face aos outros. Ter força física e mostrar isso ostensivamente para os outros é a única maneira dos jovens acreditarem ilusoriamente na sua potência efetiva, quando a impotência é o traço fundamental de sua condição psíquica e social. É ainda esta violência pitbull que passa a ser freqüentemente valorizada pelas mulheres jovens, como se fosse o signo infalível da virilidade.

Ao lado disso, face à falta de horizonte de futuro e na posição infantilizada em que se situam hoje, a juventude se inscreve decididamente na cultura do espetáculo que perpassa a cultura contemporânea. Assim, todos querem ser celebridades e ocupar a cena midiática como protagonistas importantes e até mesmo como pop-stars, como contrapartida onipotente para a impotência vertiginosa em que estão lançados. Trata-se, é claro, da renovação atual do fantasma do heroísmo que sempre marcou a juventude dos últimos duzentos anos, desde o Romantismo, mas que encontra na figura da celebridade a sua versão contemporânea.

Porém, a fragilização identitária dos jovens se enuncia de forma patente, para quem tem olhos argutos para ver e bons ouvidos para escutar. Não obstante o barulho provocado pelos arroubos da violência e da onipotência, é a impossibilidade e os limites da autoria de suas existências que se enuncia aqui de maneira trágica.

A cultura da tatuagem, que hoje se dissemina, é uma das formas de singularização buscada hoje pelos jovens, diante da invisibilidade identitária que os marca a ferro e fogo. Tal como os antigos marinheiros, lançados que eram na aventura de atravessar os incertos oceanos tempestuosos, sem lenço e sem documento, com efeito, a juventude marca o seu corpo com tatuagens como formas desesperadas para adquirir alguma visibilidade, isto é, para ser identificada e singularizada. Ao lado disso, procuram se reinscrever em outras linhagens e ascendências imaginárias, denunciando deste modo a fragilidade presente no seu sistema de filiação.
Pode-se reconhecer em tudo isso, enfim, o desamparo que caracteriza a juventude hoje, que inscreve e marca dolorosamente no seu corpo, lancetado pelas tatuagens, a sua condição psíquica torturada.

JOEL BIRMAN – Psicanalista, Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e do Espace Analytique (França), Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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