Data da Entrevista: 01 Agosto, 2011 Entrevistado(a): Alicia Fernandez Entrevistador(es): Luiza Oliva
A especialista argentina completa 40 anos de psicopedagogia e analisa importantes questões que envolvem as dificuldades de aprendizagem.
A psicopedagoga argentina Alicia Fernández foi uma das precursoras da psicopedagogia no Brasil e é responsável pela formação de parte dos profissionais da área em nosso país. É autora de Os idiomas do Aprendente, O Saber em jogo, A Inteligência Aprisionada e A Mulher escondida na professora (todos pela Artmed) e de Psicopedagogia em Psicodrama – morando no Brincar (Editora Vozes). A especialista estará no Simpósio Internacional de Psicopedagogia – Instrumentos diagnósticos e intervenção: novas práticas psicopedagógicas, realizado pela ABPp, dias 5 e 6 de setembro em São Paulo, ministrando o curso Autorias Vocacionais. De Buenos Aires, onde é diretora da Escola Psicopedagógica de Buenos Aires, Alicia concedeu esta entrevista à Direcional Educador, onde analisa questões que envolvem os problemas de aprendizagem.
DIRECIONAL EDUCADOR – Como a senhora pode definir as dificuldades/problemas de aprendizagem?
ALICIA FERNÁNDEZ – Antes de falarmos de dificuldades ou problemas, devemos falar de capacidades e possibilidades. Somente assim poderemos realizar duas tarefas: primeiro, tratar dos problemas e segundo, o que é mais importante, evitar que apareçam. A aprendizagem não é um meio para se obter outra coisa. É um fim em si mesmo. Nós humanos nascemos carentes. Somos os mais indefesos da espécie animal. O filhote humano se faz humano graças à aprendizagem. Esta “fraqueza” instintiva orgânica é seu grande potencial. Porque, como todo bebê nasce imaturo biologicamente, sem os mínimos recursos próprios para sobreviver, precisa de outro humano que o ensine, que o reconheça como semelhante, que queira e que acredite que pode aprender. Todo aprender é problemático, porque inclui, no mínimo, três sujeitos: “o aprendente”, “o ensinante” e o sujeito social (a sociedade na qual está inserido). Não é o organismo que aprende, ainda atividades quase biológicas como o caminhar, o controle dos esfíncteres, o comer sozinho; para serem adquiridas não requerem apenas um organismo sadio, e sim, principalmente, uma aprendizagem. Aprendizagem que ocorrerá de acordo com o ambiente, mais ou menos favorável no qual a criança se desenvolve. Quer dizer, se falamos de dificuldades de aprendizagem, falamos de dificuldades no ou para o meio familiar, e ou educativo/ ensinante.
Como o meio interfere nos problemas de aprendizagem?
A palavra interferir é diferente de intervir. O meio sempre intervém, e às vezes pode interferir. Que quero dizer com isto? Inter-vir (vir “entre”). Inter-ferir (ferir “entre”). Maravilha dos nossos idiomas. Nossa tarefa consiste em “intervir” e conseguir que o meio não “interfira”, negativamente. Como estávamos dizendo, não se pode esquecer do diagnóstico do “meio”, do ambiente, quando realizamos um diagnóstico psicopedagógico. A partir desta idéia central, eu escrevi meus dois primeiros livros: A inteligência aprisionada, nele trago fundamentos de como a família pode ser possibilitadora ou produtora de problemas de aprendizagem dos filhos, e deste modo, estruturo um modelo de diagnóstico interdisciplinar familiar, que venho utilizando em diversos países. E no meu segundo livro traduzido em português, A mulher escondida na professora
explico e fundamento o lugar e a importância dos professores, tanto como agentes de saúde na aprendizagem, como às vezes (ainda que sem propor a sê-lo) como desencadeadores de problemas de aprendizagem. A escola, e todos os seus atores, têm um papel subjetivante em relação aos alunos. Nós, humanos, aprendemos a partir de identificações com nossos ensinantes, e somente em um ambiente familiar, e depois, no escolar e social, que nos aceite como seres pensantes. Quero dizer, que permita e favoreça nossas perguntas, dê lugar à diferença, em síntese, que favoreça a autoria de pensamento. A inteligência se constrói, a atividade de pensamento se constrói, como também a atenção e a capacidade de se prestar atenção.
Como a senhora entende a abordagem organicista a respeito das dificuldades de aprendizagem?
As tendências à patologização dos avatares da aprendizagem se acrescentam, promovidas pela indústria farmacêutica e pela difusão das notícias pela mídia. Sem dúvida, tal discussão não teria o êxito alarmante que está tendo, se não se sustentasse nas formas de subjetivação impostas pela sociedade do mercado globalizado. Preocupa-nos a inquietante proliferação de posturas que não só psicopatologizam e medicalizam os mal estares psíquico-sociais, como também consideram suspeita e até perigosa a própria atividade da alegria e o brincar, desvitalizando a autoria de pensamento. Quanto se trata de crianças e da aprendizagem, tal tendência encontra fáceis adeptos e propulsores em professores e pais aprisionados pelas lógicas da competitividade, pela eficiência (que mata a eficácia) e pelo cumprimento imediato para se chegar a um fim exitoso, sem considerar os meios para se alcançá-lo. A aprendizagem perde assim seu caráter subjetivante – fim em si mesmo – para transformar-se em um triste meio para obter um resultado exigido pelo outro. A atividade de pensar é fascinante. Como se produz a maravilhosa e transformadora atividade de pensamento? A “fábrica” de pensamentos não se situa nem dentro, nem fora
da pessoa, está localizada entre. “Entre”, em psicopedagogia, não é uma palavra a mais, é um conceito. A atividade do pensar nasce na intersubjetividade promovida pelo desejo de se fazer próprio que nos é desconhecido, mas também nutrida pela necessidade de entendermos e que nos entendam. O pensar, ademais, se alimenta do desejo de que este outro nos aceite como seu semelhante. Desejos, aparentemente contraditórios, mas que juntos vão armando a trama do nosso existir em sociedade. Entendendo assim a atividade do pensar, poderemos encontrar outros caminhos para a construção de regras. A função do pensamento em seu sentido mais radical tem a ver com superar a racionalidade pragmática. A sustentação do pensar se dá naquilo que se quer alcançar e não no que está dado. Definimos a inteligência como a capacidade de desadaptar-se
criativamente. Quando o modo de pensar perde a provisioriedade necessária a todo o pensar, as observações descritivas e particulares são utilizadas como se fossem explicações gerais. O devastador de tal modo de pensar abrange não somente os sujeitos observados, e assim transformados em “objetos”, como também a quem pretendemos “diagnosticar”. As perturbações na aprendizagem expressam uma mensagem que é sempre singular. O “rótulo” esconde a mensagem que está entrelaçada no drama singular de cada criança ou jovem. A abordagem clínica consiste na exploração desta dramática.
Pode explicar o conceito de aprisionamento da inteligência?
A inteligência se constrói. Não nascemos inteligentes, nascemos com a possibilidade de sermos inteligentes, quer dizer, de podermos eleger nosso destino. A maioria das crianças diagnosticadas como deficientes mentais, não o são. Sua inteligência encontra-se aprisionada. Quando, 20 anos atrás, publiquei o livro A inteligência aprisionada, a indústria farmacêutica não havia penetrado nas escolas do modo que ocorre hoje, e os efeitos devastadores do neoliberalismo não colonizavam as mentes de tantos profissionais como na atualidade, portanto não considerava urgente denunciar a medicalização das crianças. Ademais, o pretendido caráter orgânico e hereditário da inteligência já estava suficientemente questionado pela epistemologia genética, pela psicanálise, pela sociologia da educação e pela psicopedagogia. Apoiando-me nestes saberes, que
contextualizam a inteligência humana em um sujeito inserido em um meio familiar e social, pude explicar os possíveis e diferentes aprisionamentos de que padece a mesma. A partir destes aportes teóricos e clínicos consegui propor outros modos de “diagnosticar” a capacidade intelectual frente a aqueles que pretendiam fazê-lo através de “cocientes intelectuais” (CI) e percentuais. Em síntese, sobre a atividade intelectual estavam então (e estão agora) suficientemente estudadas uma série de questões: que a inteligência se constrói; que tal construção nasce e cresce na intersubjetividade – pelo que não pode explicar-se do ponto de vista neurológico – e que os meios ensinantes (familiares, educativos e sociais)
participam favorecendo ou perturbando a capacidade de pensar. Quer dizer, para questionarmos os modos instituídos de pensar a inteligência, contávamos então com teorias que desde o século XX vinham rebatendo as idéias de épocas anteriores que a consideravam uma função orgânica. A situação varia quando se trata de pensar a atividade atencional. Os diagnósticos de “déficit de atenção” se realizam sobre supostos (não explícitos) que desconhecem os avanços produzidos no século XX em relação aos estudos da subjetividade humana e da inteligência. Assim, atualmente se definem tipos de atenção de modo semelhante ao determinado pela psicologia experimental do século XIX. Necessitamos analisar a atenção aprisionada, para diferenciá-la da desatenção reativa (e a ambas dos poucos casos de dano neurológico que comprometem a atenção). Hoje é urgente trabalhar e estudar a capacidade atencional como aquilo que é: uma capacidade. Partindo desta postura, a psicopedagogia pode fazer importantes aportes.
Há quantos anos trabalha com a psicopedagogia?
Pode fazer um breve histórico de como iniciou na área? E como vê a evolução da
psicopedagogia nesse período?
Neste ano completam-se 40 anos que desenvolvo a maravilhosa atividade da psicopedagogia. Fazer psicopedagogia é uma atividade que não somente nos permite, como também exige fazermos por nós mesmos, o que podemos fazer pelos outros. A exigência de fazer por nós mesmos se refere a ir re-significando nossas próprias modalidades de aprendizagem/ensinagem, e ir nutrindo as fontes propiciadoras de nossa própria autoria de pensamento. Uma destas fontes é a “alegria” que vem de mãos dadas com a capacidade de surpreender-se. Você me pergunta como iniciei minha carreira. Na Argentina, a psicopedagogia é uma formação que ocorre na graduação. Eu comecei trabalhando como orientadora educacional em escolas de regiões carentes, as quais me serviram como uma grande aprendizagem, já que ao mesmo tempo em que estudava na faculdade, podia receber as perguntas que aquela realidade educativa colocava a professores e alunos.
Como vê o futuro da psicopedagogia?
Há exageros na questão do encaminhamento psicopedagógico?
Um dos aspectos da subjetividade – mais atacado pela sociedade neoliberal – é a possibilidade de pensar. Este ataque é lento, persistente e perigoso. Vai se dando imperceptivelmente. Jovens e adultos o sofremos. Na escola se evidenciam os efeitos de tal bombardeio. Nos alunos se manifesta como um aborrecimento-tédio e pode expressar-se como “desatenção”. Nos docentes pode aparecer como desânimo e “queixa-lamento”. Portanto o futuro da psicopedagogia depende da postura que cada psicopedagogo pode ir construindo, quer dizer, priorizando a saúde da aprendizagem tanto nas escolas, nas famílias e nos meios de comunicação. Esta é a tarefa principal. Encaminhar uma criança ou jovem a um tratamento é só uma última instância. A psicopedagogia tem muito que contribuir se conseguir ser fiel à proposta psicopedagógica da saúde. Em síntese, frente à nossa inteligência aprisionada, a tarefa a de cada um de nós, como ensinantes e aprendentes, passa por: o autorizar-se a pensar; o permitir-se perguntar, o perguntar, o deixar espaço à imaginação e ao prazer de aprender; e, em conseqüência, ao prazer de ensinar.
Matéria publicada na Revista Direcional Educador – edição 43 de agosto/2008